Blue Diamond e Lápis Lazuli: Hierarquia e Depressão


Curiosamente, as duas personagens de Steven Universe que mais permitem levantar uma discussão séria sobre depressão, ao menos até o final da quinta temporada, são azuis.

Esse texto contém spoilers.

Blue Diamond e Lápis Lazuli. Diversos momentos das duas ao longo da série, até aqui, nos permitiram reflexões sobre o problema da depressão na sociedade, o que eu considero bastante útil para traçar e aplicar estratégias de enfrentamento coletivo e individual. Existe um vínculo entre elas no enredo, sendo que uma é uma imperatriz do quadrunvirato/triunvirato que controla e domina todo o império intergaláctigo das gems e a outra é uma poderosa membro da sua corte, que ao que tudo indica, tinha a função de preparar os terrenos de planetas em processo de colonização, para adequá-los ao processo de extração dos recursos ali disponívels.

Explicando para quem não entende de Steven Universe, mas conhece o universo Marvel: as diamantes seriam uma espécie de Galactus, devoradoras de mundos, mas na verdade elas não se nutrem diretamente dos planetas colonizados, e sim usam da força de trabalho de suas servas para instalar uma avançadíssima tecnologia que usa os nutrientes do solo para criar novas criaturas da espécie delas, as Gems, que por sua vez serão utilizadas para conquistar e "devorar" novos mundos. O enredo da história se dá por conta do momento em que os destinos do império diamond e do planeta Terra se encontram, com a tentativa do primeiro de colonizar o segundo.

O objetivo desse texto não é listar todas as referências à depressão no percurso dessas duas Gems até aqui, na série, e sim comentar algumas ideias que me vieram sobre a relação entre elas.

Cabe explicar também, e lembrar para quem já conhece e acompanha a série, que ambas apresentam motivos para suas tristezas, no desenvolvimento de suas personagens, mas esses motivos são diferentes.

Blue Diamond, a Diamante Azul, vivia há quase seis mil anos um profundo luto pela perda de sua querida irmã (acredito que podemos chamar as Diamantes de irmãs, mas isso pode ser controverso, por motivos que não convém aqui aprofundar), a Pink Diamond, a imperatriz dona do planeta Terra. O fracasso desta jovem imperatriz em devorar seu primeiro planeta teve seu ápice quando ela é assassinada por uma de suas soldadas, que então já liderava um exército rebelde. Blue Diamond e todas as gems dos mais altos aos mais baixos níveis da raça gem odeiam a assassina rebelde Rose Quartz, a mãe de Steven, que morreu no parto, mas vive no umbigo do menino. Por isso o protagonista da série é alvo do ódio das servas das diamantes e delas próprias.

Porém a personagem Blue Diamond nem sempre aparecia para o público como alguém que odeia. Sua tristeza é grande e profunda. Então todo o ímpeto das comandantes imperatrizes em avançar e consolidar seu império e toda a vontade de vingança pela morte da Pink são diminuídos, em Blue Diamond, por um imenso luto que não se resolve, por um amor a uma companheira que foi vítima da rebelião e, por que não, da forma como elas, as Diamantes mais experientes, pressionaram a Pink a conduzir o enfrentamento à crise da rebelião em sua primeira colônia, se recusando a aceitar inclusive as alternativas que ela propôs ao longo do processo de guerra na Terra, para acabar ou diminuir com o conflito.

Já Lápis Lazuli, não sabemos exatamente todas as coisas sobre seu passado, mas tem um processo muito diferente. Apesar de seu imenso poder, não era uma gem guerreira, e inclusive era indiferente aos dois lados da guerra. Ela apenas estava na Terra quando a guerra aconteceu, e sem tomar partido pelo lado das Diamonds, com seus exércitos, ou das rebeldes, acabou sendo vítima da guerra, e ficou prisioneira durante todos esses milênios. Apenas quando o menino Steven tem contato com seu calabouço ela é libertada, e quando tenta voltar ao Planeta Natal, é trazida de volta como refém de uma missão que as Diamantes enviam à terra, sendo coagida por uma poderosa soldada dessa missão a uma fusão forçada de seus corpos (uma das magias da raça gem relatadas na série), para finalidade de batalha. O ódio e o rancor a levam a se impor, junto com a soldada Jasper, um novo cativeiro no fundo do oceano terrestre, que dura aparentemente meses, e causa ainda mais marcas na sua estrutura psíquica.

Vimos, mais recentemente, um reencontro entre Blue Diamond e Lápis Lazuli. E é sobre esse encontro que eu queria comentar. Um dos poderes da Blue é emitir uma aura de profunda tristeza, que atinge todas as gems próximas a ela, inclusive as poderosas diamantes. Esse poder atinge mais fortemente aquelas gems que não são tão poderosas quanto elas, e até mesmo impede que consigam agir, e portanto, batalhar.

Mas chamou atenção, surpreendeu e comoveu a todos que acompanham a série o fato de que Lápis, voltando já de seu terceiro exílio, tenha demonstrado um poder de resistir à aura de tristeza de sua diamante. E o argumento dela para explicar isso parece afirmar que não se trata de um poder inato, nem do fato de pertencer à corte da Blue (afinal, Safira também pertence e, nem por isso, a Garnet foi capaz de tal proeza, sendo que a Safira é metade da constituição da Garnet). Lápis simplesmente explica que já sentiu tristezas piores.

Tristezas maiores do que a causada pelo poder da Blue Diamond? Ou maiores do que as que levam Blue ao seu profundo luto e à sua sede de vingança? Era justamente essa a questão que eu gostaria de levantar, e quero as opiniões de quem acompanha a série sobre essas perguntas, assim como de quem não acompanha, mas se interessou em ler o texto até aqui.

Me parece que o desenho nos permite refletir sobre as diferentes manifestações da depressão, variadas em função dos diversos estratos de uma sociedade profundamente hierarquizada como é a sociedade gem.

Eu quero que seja possível para as pessoas, depois deste meu texto, enxergar neste trecho da luta entre Lápis e Blue uma analogia, provavelmente intencional, talvez acidental, entre os modos de sofrer dos psiquismos de pessoas de classes hierárquicas distintas. Podemos falar de classes sociorraciais, socioprodutivas ou sociossexuais, se a relação estabelecida socialmente é hierárquica, temos estratos que sofrem de maneira distinta. É um erro atribuir, por exemplo, à questão de classe toda a causação do sofrer psíquico, se não não haveria expressão dessa doença em classes diferentes... Inclusive as variações de manifestação de uma mesma doença dita mental podem ser todas encontradas em cada uma das classes sociais existentes. Dessa forma, poderíamos incorrer no erro de afirmar que não importa a questão de raça, de classe ou de gênero, muito menos de orientação sexual e identidade de gênero. No entanto, nem tanto à terra, nem tanto ao mar. O que temos é uma influência de cada um desses fatores hierarquizantes em uma doença, em doenças, em sofrimentos psíquicos, que podem sim atingir a todas as pessoas, independentemente de sua classe, mas que depende dessas classes, sociais, raciais, produtivas, sexuais, o modo e a intensidade com que cada pessoa ou grupo social vai vivenciar essa experiência. Lápis e Blue são, para mim, uma analogia do quanto o sofrimento psíquico atinge a todas as pessoas, e do quanto importa o sofrimento de todas as pessoas, mas também do quão inegável é que, para os estratos cuja hierarquização torna a vida mais difícil, esse impacto é maior ou, ao menos, com uma complexidade peculiar e relativa a essa maior exigência. E como consequência disso, Lápis e Blue são, para mim, uma metáfora para que entendamos que nossa preocupação com esse problema precisa ser atravessada pelo entendimento dessas hierarquizações sociais e do caráter nocivo delas. beijinhos de maracujá!

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