A ESCUTA PRETA (considerações ainda preliminares)


Imagem originalmente encontrada em: https://rioonwatch.org.br/?p=43451



Ser uma pessoa preta no local da escuta, não como alguém que não fala, que se cala diante da exigência silenciadora da branquidade racista, mas como alguém que profissionaliza em seu corpo o ato de escutar. Por mais que você passe anos de sua vida preparando seu corpo para isso, através de um processo de formação acadêmica, de um bacharelado, por mais que você tenha praticado a escuta por anos durante seu processo de formação profissional... Por mais que você tenha tentado processar por anos o que seria este local. Ser uma pessoa preta no local da escuta muda tudo, é muito diferente quando você está lá.

Eu tenho inaugurado esse local em meu trabalho clínico, psicoterapêutico, e estou aqui para compartilhar uma primeira pílula dessa experiência neste texto. Uma escuta preta não é necessariamente uma escuta da fala de pessoas pretas, mas também nesta dimensão há algo a se ponderar. No entanto, eu começo ainda por antes: por muito tempo eu achei que ser uma pessoa preta que escuta na clínica era uma exceção, mas muitas, muites e muitos de nós estamos criando esta prática. É me somar a um ofício. Então começar um trabalho clínico também é parte da tarefa de descobrir como muita gente antes de mim já fez, e ao mesmo tempo é criar um jeito só meu de fazer.

É impossível que eu escute o sofrimento de uma pessoa sem que ele traga, na forma de eco, o ambiente social onde reverberou, da boca de quem diz até o meu ouvido em escuta. A construção de uma psicologia histórico-cultural faz com que necessariamente eu escute este eco vindo junto com a voz da pessoa, contando a história do mundo em que ela vive. Este mundo existe nela e fala através dela. É deste e neste mundo que vêm seus sofrimentos. É deste e neste mundo que potências são possíveis de se engendrar. E este mundo é, necessariamente, um mundo racista. Uma escuta preta consegue acolher, destas dores, aquela dimensão que as escutas brancas sempre se negaram a escutar.

Então tem essa parte aí da história, né? Por muito tempo as técnicas (as mais diversas técnicas das variadas abordagens psi) foram escudo e argumento pra justificar uma verdadeira negação de escuta ao aspecto racial das dores das pessoas pretas. O espaço de fala clínica, aquele de quem recebe a nossa escuta, o espaço de paciente, analisando, cliente, clinicando... Esse espaço já não era muito um espaço de gente preta... Mas quando a gente chegava lá, as escutas justificavam sempre, através de suas técnicas, que tinham capacidade de escutar muita coisa, mas algo da nossa dor não podia nunca ser escutado... Era sempre justificado, maquiado, substituído... Nunca era racismo, sempre era outra coisa qualquer.

E uma escuta preta se abre, em primeiro lugar, para a demolição destas resistências pseudotécnicas a encarar os impactos psíquicos da estrutura social racista. A dinâmica da sociedade de classes sociorraciais, da hierarquização das pessoas em raças, é objetivamente causadora de feridas e dores psíquicas, e no entanto a escuta preta ainda precisa cumprir a tarefa de ir inaugurando, a cada nova ação, um jeito de fazer clínica que abre seus olhos para esta dimensão. Uma escuta preta me parece precisar ser, por tanto, não apenas aberta a esta hierarquização de classes (a das classes de raça), mas também a todas as demais formas de silenciamento, submissão, hierarquização, dominação e exploração que atingem as pessoas a quem escutamos.

Uma escuta preta pode ser para outras pessoas não-brancas, não apenas pessoas negras. A racialidade eurocêntrica não hierarquiza apenas branquidade e negridade, mas sim todas as ditas "raças não brancas" como diversas variações de raças inferiores à raça branca. Na verdade, é como se branco não fosse raça, como se fosse humano, e todo o resto da humanidade é raça, e portanto, desumanizada. Então uma escuta preta pode se dispor a, mesmo sem conhecer a realidade de pessoas indígenas, amarelas, etc., mesmo sem ter "lugar de fala", ainda assim ter lugar de escuta. Lugar de escuta transformadora, aberta a acolher e a criar novos sentidos para os significados sociorraciais já colocados.

E estes novos sentidos sociorraciais podem atravessar também a fala de pessoas brancas. A escuta negra também tem algo a oferecer para o entendimento e enfrentamento do sofrimento psíquico da branquitude (e me pergunto agora se também da branquidade). Aqui a grande diferença entre ambas é que a branquitude se coloca em uma posição consciente de privilégios, em busca de se transformar junto a uma transformação da estrutura racial, enquanto a branquidade ainda busca se manter em posição hierarquicamente superiorizada. Serve uma escuta negra a uma fala de branquidade? A uma fala de resistência à mudança antirracista? E serve uma fala de branquidade a uma escuta negra?

Não acho que daqui, do papel da escuta, não possamos dizer não àquilo que não damos conta ou não queremos escutar. É até desonesto que eu me coloque a ouvir o que meu corpo não dá conta. Mas acho que mesmo a escuta da fala branca ensimesmada, da fala da branquidade, serve a uma clínica preta que se constrói. Ouvir não apenas a branquitude (aquela que quer se desconstruir), mas também a branquidade, é ajudar a desenvolver um entendimento deste cenário que todas as vozes que escutamos compartilham em seus ecos. O cenário é o mesmo, em todas as diferentes vozes, mas os àngulos dos quais essas vozes ecoam variam de acordo com as posições definidas por esta hierarquia, e isso não pode ser silenciado.

Uma escuta negra, por fim, é acima de tudo uma escuta de implosão. Não é uma escuta acomodativa, que vai buscar devolver as pessoas aos seus lugares, retiradas da inquietude do sofrimento psíquico para um lugar de paz sem voz. Ao contrário disso, uma escuta preta enfrenta os medos, para transformar o motor do sofrimento psíquico em transformação, em novas possibilidades. Uma escuta negra pode também incorrer em ser negridade, e não negritude. Mas uma escuta de negridade, uma escuta que acalenta o racismo e o releva, que trata tudo como se fosse um mundo branco, onde o racismo não existe... Isso não é uma escuta preta... Nos tempos de escuta apenas branca, a gente já tinha isso aí...

A escuta preta é a escuta de um corpo preto, mas não apenas... Seja a escuta de um corpo preto para um corpo branco, preto, vermelho, amarelo, a escuta preta é também uma escuta de projeto preto de emancipação. Uma clínica preta também precisa ser a possibilidade de que cada pessoa escutada, em seus novos possíveis, em suas construções de novos sentidos, em suas elaborações de vida, estejam também criando um pedacinho de uma nova forma de sermos humanos. De uma forma em que a hierarquização social racista não cabe mais.

Fazer clínica preta só pode ser uma prática antirracista.

beijinhos de maracujá!

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