[Comunicação Oral] Notas metodológicas preliminares para o estudo da articulação entre questão racial negra, sofrimento psíquico e controle do sistema social










Estou publicando este texto no blog para tornar acessível um escrito meu de 2016, acredito.

Desde que comecei a publicar no Raio X dos Afetos, tenho pavimentado condições para debates futuros. Esse é o quinto texto, se não me engano, e cada um deles é uma semente de debates futuros. Nenhum dos textos que publiquei até agora encerra o que quero dizer sobre o assunto, nem o que quero ouvir do que já foi dito por mim. A ideia é abrir debates, prolongá-los, semear aprofundamentos das discussões. Aqui eu quero plantar a semente do encontro entre três dos meus temas de estudo preferidos.

Estou fazendo essa introdução para o texto que vocês poderão ler logo abaixo, e essa introdução pretendo contar a história do curto texto, do porquê de sua escrita e do motivo que me levou a torná-lo público agora.

Para quem não conhece, desde acredito a década de setenta, estudantes de psicologia de várias regiões do Brasil organizam o Encontro Nacional de Estudantes de Psicologia (ENEP), o maior ou um dos maiores encontros de estudantes de psicologia do Brasil. Eu fui íntimo desses encontros por oito anos consecutivos, porque de 2009 a 2016, participei de todos eles, em diversas cidades do Brasil (inclusive em 2015 no meu estado e na minha cidade natal, no ENEP Vitória.

No entanto, em 2016 eu era não apenas ex-estudante (formado em psicologia), como ex-mestrando (desligado por reprovações do Programa de Pós Graduação em Política Social da UFES), e esse processo traumático do mestrado marcou muito um momento em que me distanciei das predileções pelos temas "psicoativos, política de drogas e antiproibicionismo", "avaliação e controle da educação e formação humana" e "SUS, reforma psiquiátria e luta antimanicomial".

Esse distanciamento provisório e forçado veio por vivências pessoais e conjunturais (naquele momento a pauta negra pegava fogo no mundo e no Brasil, inclusive nos movimentos sociais, bem mais do que na academia, mas também nesta), e eu acabei me aproximando mais de temas relativos à questão racial negra, ao genocídio, à participação da negritude na construção de poder paralelo e contra-hegemonia para a revolução, à própria questão da identidade racial, das mais superficiais às mais profundas conceituações deste universo discursivo. O fato é que toda essa racialização das minhas preocupações de práxis, inclusive acadêmica, marcou minha vida desde então, e acredito que para sempre.

Eu ainda tenho me recuperado das marcas desta virada, sendo que essa nova fase tem no seu germe os elementos da fase anterior, leva esses elementos adiante e, acredito eu, já tinha um projeto de retorno às temáticas abandonadas (inclusive à do meu projeto inacabado de mestrado, sobre o controle social nos CAPS AD e a catarse gramsciana). Esse tema, que seria de minha dissertação de mestrado, precisa ser revisitado futuramente. Provavelmente depois que eu já tenha me titulado mestre. E tenho quase que certeza de que meu mestrado será em outro tema, já bem afundado na questão racial (a questão racial negra e os limites absolutos do sistema do capital para Mészáros, para ser mais exato). No entanto, o curto texto que vocês poderão ler abaixo mostra uma preocupação minha neste momento de transição.

Em 2016, no ano do último ENEP em que eu participei, eu estava racializando minha visão do funcionamento da sociedade, e escrevi um trabalho para apresentar para este encontro. O formato era uma comunicação oral, então optei por apenas apresentar algumas notas metodológicas preliminares, que é o que vocês poderão encontrar aqui embaixo. Então eu estava ainda arrasado pelo fracasso acadêmico de alguns meses antes, fracassando em reedificar a minha vida diante de outros fracassos (além de acadêmicos, também econômicos, militantes, familiares, afetivos e existenciais). Parte da minha crise existêncial tinha a ver com essa transição de fases quanto às problemáticas de estudo, e foi nesse contexto que escrevi as notas metodológicas que estou publicando aqui.

Estou publicando para vocês, mas também para mim. Tornando-as públicas, também me obrigo a continuar os debates aqui iniciados. A apresentação deste trabalho foi um momento marcante e inesquecível para mim, os debates foram incríveis (não apenas nesta sala de comunicações orais, mas em todo o evento). Houve polarizações e polêmicas, como naquele momento estava bastante em voga, e eu aprendi muito com elas. O evento ocorreu em Cruz das Almas, no Recôncavo Baiano, e eu saí deste encontro convencido de que deveria continuar esse debate com um novo trabalho, a ser apresentado no ENEP seguinte.

Acontece que no ano seguinte o ENEP não aconteceu, e em 2018 eu não fui ao ENEP de Feira de Santana (se não estou enganado, foi essa a sede do ENEP 2018) para apresentar a continuação desta comunicação oral. O texto a seguir fala sobre o sistema do capital, a questão racial negra e a questão do sofrimento psíquico (tradicionalmente chamada de "saúde mental", nomenclatura da qual eu tentava me distanciar e que ainda acho cientificamente ruim, apesar de ainda usual). Não sei se vou ver um dia a comunidade científica e o senso comum abolindo ou abandonando o uso do termo saúde mental, mas sei que devo fazer duas coisas:

A primeira delas é continuar esses debates, aplicar essas notas metodológicas preliminares numa pesquisa mais profunda sobre o modo como o sofrimento psíquico se realiza nas especificidades da articulação entre a questão racial negra e o sociometabolismo do sistema do capital (todo o meu estudo posterior sobre a questão negra a entende como sendo intimamente ligada a esse sociometabolismo, e o texto anterior do blog, aquele sobre hierarquia e depressão em Lápis e Blue, personagens de Steven Universe, na verdade é um texto que traz elementos de aplicação das notas metodológicas que estou publicando agora, observem).

A segunda coisa que devo fazer é preparar um trabalho sobre a felicidade negra. Talvez novamente em forma de notas metodológicas preliminares. Talvez para apresentar no próximo ENEP, ou em qualquer outro evento. Talvez apenas para postar aqui no blog, talvez para um projeto academicamente mais ambicioso. O fato é que eu vi tanta reatividade e ressentimento nos modos de construir coletividade negra, antirracista, afrocentrada e panafricanista, no modo como vivenciamos aquele ENEP Cruz das Almas (o ENEP onde apresentei essa comunicação oral aqui), que senti a necessidade de estudar o outro lado. Para além de denunciar o modo como o racismo dessa sociedade, supremacista branca, causa sofrimento psíquico, eu senti também a necessidade de um movimento positivo: eu preciso estudar como a negritude pode construir um projeto de felicidade para si. Já adianto que um debate crucial aqui é: essa felicidade pode ser construída? Se sim, ela pode ser construida através de uma tentativa de integração com a branquitude? Ou apenas através de uma separação negra do mundo branco e de um retorno a si?

Eu não percebia, ao final do ENEP 2016, que esse novo tema que eu concluia tão importante (o da felicidade negra), era na verdade tão intimamente ligado ao tema da revolução negra. E a revolução negra é assunto para o Raio X dos Afetos.

Mas isso é papo para outro capítulo. Degustem o resumo das notas metodológicas preliminares, escrito para inscrição no ENEP Cruz das Almas 2016 e me digam o que acharam. Fico feliz que tenham tido a paciência de chegar até aqui. Peço por favor: se leu tudo e ainda aguentar ler o texto todo abaixo, não deixe de depois me mandar uma mensagem comentando. Sigam o blog e vamos ao texto: 

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[Comunicação Oral] Notas metodológicas preliminares para o estudo da articulação entre questão racial negra, sofrimento psíquico e controle do sistema social

EIXO 2- Para além do histórico-social: racismo como sofrimento psíquico.

Esta Comunicação Oral, com metodologia de Grupo de Discussão (GD), pretende permitir elementos para o estudo da relação entre a problemática do sofrimento psíquico e a do racismo, sob os marcos do modo de produção de capitalista e do sistema do capital como um todo. Aqui o capital é entendido como um modo de controle sociometabólico incontrolável. A relevância do debate aqui feito é porque, no entendimento de quem formula este trabalho, há muito sendo formulado sobre saúde mental e racismo, até mesmo considerando as determinações sociais, mas há questões de método que precisam ser colocadas em questão para qualificar o estado da arte sobre a articulação tais problemáticas. Estas notas metodológicas preliminares constituem um plano de estudos para uma vida inteira, e têm inspiração na ideia marxiana de que não devemos buscar compreender a sociedade capitalista tendo como chave as que a antecederam, mas sim o oposto. Assim o racismo moderno e o sofrimento psíquico moderno serão chaves explicativas. A primeira questão metodológica é: sabemos que o racismo existe, mas e a raça? A segunda é: loucura e modos de vida desviantes da normalidade existem, mas e doença mental? A primeira questão se desdobra, de uma teoria geral das opressões, para uma particular do racismo, e aqui temos a tarefa de enfatizar que a questão racial negra é um dos diversos subitens da questão racial, para não invisibilizar outras contradições, como por exemplo a questão indígena no caso brasileiro. O sistema específico de hierarquização, socialmente legitimada, entre pessoas brancas e negras pode ser estudado entendendo a existência de universos vivenciais distintos - o da branquitude e o da negritude -, sendo um o espaço social de vivência de privilégios e o outro o de vivência de opressões. Assim as pessoas, que não são naturalmente de raça alguma, passam a ser hierarquizadas como brancas ou negras, e para fugir à naturalização desses papéis, podemos observar nesse sistema de hierarquização respectivamente a desconstrução da branquitude - que diz respeito a abrir mão de privilégios - e o embranquecimento - que tem a ver com a evitação de vivências de opressão. O combate antirracista ao embranquecimento se dá através de diversas - e muitas vezes conflitantes -, formas de enegrecimento, de onde vem a construção coletiva de consciência negra. Porém, devemos nos atentar para o fato de que o sistema do capital não apenas nos nega a identidade negra, mas também pode por vezes optar por nos controlar através da afirmação de modelos desta identidade. Questão fundamental é se há ou não possibilidade de acabar com o racismo, e por sua vez se isso se daria através do fim da divisão entre raças. Já a segunda questão metodológica diz respeito à legitimação psiquiátrica - também baseada em um sistema de hierarquização social - que transforma comportamentos em doenças. A mercantilização da saúde pede a criação de doenças, mas também o controle sobre os corpos das pessoas - por exemplo a legitimação da internação asilar e a questão da manicomialidade - está por trás de tais interesses . A chamada loucura é um fenômeno plural, encontrado em diversas sociedades, mas não tem em si a ver com sofrimento psíquico. Os contextos sociais vividos então são vistos como responsáveis pelos casos em que há convergência entre o sofrimento psíquico e a loucura ou o uso de psicoativos. O pensamento pichoniano aponta a chamada doença mental como processo de acúmulo de angústias grupais, principalmente familiares mas não apenas. A pessoa que adoece está denunciando processos coletivos, e a individualização do sofrimento psíquico é uma resistência à mudança da situação denunciada. Este trabalho quer questionar até que ponto é emancipador falar em doença mental nas nossas investigações e práticas profissionais, e sugere que nos desloquemos do campo conceitual da saúde mental para uma teoria geral do sofrimento psíquico, já que uma característica das ações e modos de vida que são consideradas doenças mentais é o sofrimento psíquico - próprio e/ou alheio, individual e/ou coletivo. E se sofrimento psíquico é denúncia de processos coletivos, o sofrimento psíquico causado pela vivência da opressão racista denuncia o racismo, o que exige de profissionais da saúde, no enfrentamento do sofrimento psíquico, que enfrentem o racismo para superar o sofrimento psíquico e vice-e-versa. Esta conexão não se dá em uma historicidade abstrata, mas sim no contexto concreto da sociedade burguesa, capitalista ou moderna, como quisermos chamar. Isso exige uma terceira questão metodológica chave, que diz respeito ao metabolismo do sistema do capital. A mundialização do modo europeu de dominação colonial tem a ver com o engendramento do racismo moderno e também da emergência de uma psiquiatria manicomial fundada na doença mental. O controle de indivíduos, grupos sociais, povos e territórios está diretamente ligado ao funcionamento do sociometabolismo deste sistema, que se constitui submetendo todos os processos humanos à acumulação e expansão do capital, e impedindo qualquer dispositivo de controle que contrarie esses seus objetivos. Isso quer dizer que enfrentar a articulação entre racismo e sofrimento psíquico pede a superação de todo o sistema do capital, de cima abaixo, com especial atenção a sua base de estruturação alienante: a divisão social hierárquica do trabalho.

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beijinhos de maracujá!

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