Introdução a uma Teoria das Opressões (ou Privilégio, Prejuízo e Sociedade Visceral)


Eu buscava há muito a palavra prejuízo. Eu já a tinha, já fazia parte do meu vocabulário, mas não havia ainda me dado conta de que era ela a palavra que eu estava procurando, há muitos anos, pra me ajudar a realizar uma tarefa.

Nós, que fazemos teorias, dependemos das palavras como instrumentos de trabalho. Todo mundo usa palavra, mas nós somos profissionalmente dependentes delas, num nível absurdamente alto. Podemos simplesmente pegar palavras já moldadas e significadas antes por outras pessoas e colocá-las para trabalhar, ou ensinar sobre o sentido que no passado e no presente deram e dão a elas. Mas podemos precisar às vezes de palavras, novas ou usadas, para criar novos trechos de teoria, que serão futuramente percorridos ou não por outras pessoas.

E eu buscava há muito a palavra prejuízo. Não estava satisfeito com um conceito sem palavra que eu tinha, e nesse esforço poético hercúleo, tinha chegado à palavra preterição. A gente tem uma quase-familiaridade por causa do pretérito, lá do português, flexão verbal, a gente sabe que tem algo a ver com o passado, e eu até sofri influência disso para criar esse meu conceito. Seria um antônimo de privilégio.

Então quando alguém é privilegiado, é como se levasse uma vantagem, uma mesada, um presente. Presente no português tem muitos sentidos, podemos usar o inglês para gift ou present. O privilégio teria os dois sentidos.

A preterição seria o antônimo dos dois sentidos. A pessoa preterida, ao contrário da privilegiada, não ganhou um presente, um brinde, um gift, uma mesada, uma vantagem. E ao mesmo tempo ela é passada para trás e, digamos assim, lançada para o passado, enquanto a privilegiada é destinada a ocupar o presente. Teria a ver, nessa minha maluca filosofia, com protagonizar um momento, com estar no palco da história, com ocupar a narrativa oficial.

E agora, em 2019, acho que foi até no carnaval (mas pode ter sido antes, talvez até antes do natal do ano passado), eu me dei conta de que a palavra perfeita para esse conceito era prejuízo. Faz muito mais sentido, não que a preterição não desse conta de contar um pouco do fenômeno que eu queria descrever. Faz muito mais sentido dizer que o privilégio de algumas pessoas resulta no prejuízo de outras. Mas é verdade que o privilégio de umas pessoas gera a preterição de outras. E quem disse que a preterição não é um prejuízo?

Então para uma teoria dos prejuízos, do ponto de vista de uma psicologia das opressões, é fundamental entender que a preterição é uma característica nuclear do prejuízo. Isso quer dizer que para haver desigualdade, desarmonia e desvantagem hierárquica, o prejuízo é um objetivo e a preterição, uma ferramenta. Mas mais do que isso, ela é uma característica intrínseca ao prejuízo. Acredito que esse foi o principal motivo para eu, na ausência de uma palavra para designar o fenômeno pretendido e estudado, ter podido por tanto tempo utilizar a outra como substituta e, por mais que não satisfeito, conseguido utilizá-la para desenvolver essa minha teoria.

Inclusive, é isso... Isso é importante: eu estou há anos desenvolvendo uma teoria das opressões. Aqui no Raio X dos Afetos ela será desenvolvida, quero trocar com vocês nesse processo. Tenho muitas coisas elaboradas e muitos fios a amarrar, é uma teoria em construção. Mas muita coisa está estruturada e estou a anos ansioso para mostrar muitas delas.

Muitos elementos muitas pessoas já conhecem, inclusive quem já viu minhas formulações (em debates presenciais ou em espaços como o Artifício Socialista, meu blog antecessor deste aqui) sobre a Luta Antimanicomial, a Questão Racial Negra ou o Sistema do Capital, por exemplo... Toda a teoria das preterições estava lá, como embrião da teoria do eixo privilégio-prejuízo, que pode também ser chamada de teoria das opressões da psicologia do artifício, ou teoria das hierarquizações sociais, ou teoria das lutas de classes siamesas. Esses nomes diferentes falam de ângulos diferentes na observação do mesmo fenômeno.

Nesta teoria, em consenso com muitas outras abordagem sobre o fenômeno das opressões, nas suas variadas expressões, as opressões são hierarquizações sociais, estruturadas de uma maneira coerente e autorreprodutora de si. E as várias opressões não são apenas hierarquizações simultâneas que compartilham do mesmo DNA. Não em corpos distintos. Como no adinkra Funtunfunefu-Denkyemfunefu, as várias opressões compartilham um mesmo estômago, ou melhor, um mesmo sistema de vísceras.

Percebem? Racismo, machismo, heterocissexismo (a chamada LGBTfobia), elitismo burguês, todas essas opressões e outras que temos conhecimento, elas todas digerem com o mesmo estômago e o mesmo intestino... Por mais que pareçam fenômenos diferentes, têm as mesmas vísceras, o mesmo aparelho digestório, COMPARTILHAM DOS MESMOS ÓRGÃOS. Isso explica boa parte do racismo institucional, por exemplo, e dos padrões que se repetem com as outras opressões no campo institucional.

Como esses órgãos se misturaram e viraram um só sistema de órgãos? Isso é assunto para outro texto, mas é fato que, na minha teoria das opressões, isso foi um processo de mescla e fusão, não simplesmente a origem de um e mesmo zigoto de proto-opressão originária, que se diferenciou em cabeças diferentes para opressões diferentes. Pelo contrário, as protoopressões eram muito diferentes entre si, todas passaram por processos diferentes de mundialização (ou globalização), e cada uma a seu tempo, até caminharem em direção às opressões modernas, fundidas cada vez mais numa só e mesma carcaça tirânica de sistemas de dominação e hierarquização social com cabeças diversas.

As cabeças são os resquícios desse momento passado em que diversos povos tinham diversos protopatriarcados, diversas protorracializações, formações sociais com castas diversas, classes sociais (ou socioprodutivas, para aumentar a precisão conceitual) diversas, enfim. Por mais que, na minha teoria das opressões, as vísceras dessas várias opressões mundializadas ou mundializando-se tenham se misturado, as cabeças conservaram suas capacidades próprias de deliberação e devoramento. O racismo devora pessoas negras, o machismo, mulheres, o elitismo burguês que é a verdadeira ética do capitalismo, o povo pobre e trabalhador, vulgo proletariado. Cada cabeça devora os seus. Mas o motor que digere os nutrientes é o mesmo, são os mesmos órgãos que operam a parte mais USINA de todas as opressões.

Então as opressões seriam, nessa teoria analógica maluca, espécies de mastigações, em analogia com o início do nosso processo digestivo. Tudo começa com mastigação, deglutição, salivação, e esse é o papel das opressões no metabolismo social.

O fenômeno que o marxismo chama de mais-valia está no âmbito visceral e nutritivo, no coração de todo esse mecanismo, junto com diversos outros processos que com a mais valia se misturam e que a envolvem. Ok, a afirmação de que a mais-valia é um processo, né? Pois bem, para falar da luta de classes clássica, ou seja, a luta entre classes socioprodutivas (o fenômeno estudado por Marx), não basta apenas olharmos para o fenômeno da extração de mais-valia e acreditarmos que está tudo explicado. Existe um fenômeno de superfície que é em substância perfeitamente compatível com o machismo, o racismo, as chamadas LGBTfobias, enfim. Eu por enquanto achei as palavras "elitismo burguês", porque entendo que é da natureza dessa opressão ser uma relação de privilégio burguês.

E prejuízo proletário, ok? Prejuízo da classe trabalhadora, da classe-que-vive-do-trabalho. Vou dizer assim, o elitismo burguês é uma superestrutura que sustenta a exploração do trabalho, e por consequência, o processo mais-valia.

Percebam que a exploração e a extração são termos comuns à teoria marxista da mais-valia e aos estudos sobre mineração, por exemplo. Guardem também essa analogia, porque ela pode ser bem pedagógica para quem quer entender dessas coisas.

Para concluir essa teoria das opressões, eu quero reiterar, é preciso manter uma diferença de potencial, ou seja, uma relação de privilégio e prejuízo, para que possa correr a seiva do mais-valor. Sem essa diferença de potencial (emprestei esse conceito lá da física elétrica), não é possível fechar o círculo vicioso da exploração. Eu preciso demonstrar isso passo-a-passo, em muitos futuros textos, mas em essência, é a essa diferença de potencial que chamamos de hierarquização social, a base de todas as opressões, no meu entender.

Preciso continuar este debate falando sobre os efeitos colaterais, privilégios e prejuízos secundários, os modos como todas essas engrenagens se encaixam (ou seja, a anatomia de todo esse sistema) e as consequências mais práticas (e em um nível um pouco menos abstrato) de todas essas coisas aqui ditas.

Espero contar com a companhia de vocês na apresentação de cada um dos próximos passos desta teoria, e acolho críticas, sugestões, correções, dúvidas, dicas, pedidos, elogios e até ofensas.

Por fim, preciso dizer que ao contrário do Funtunfunefu-Denkyemfunefu, que representa a rivalidade entre tribos irmãs e o fato como elas matam a si mesmas quando matam umas às outras (já que compartilham do mesmo estômago), no caso do trigêmeo siamês patriarcado/supremacia branca/sistema do capital, o que predomina não é o conflito entre cabeças, mas a cooperação para prosperarem se retronutrindo mutuamente e perpetuarem seu império perverso por séculos e séculos.

E isso também é motivo para futuras reflexões!

beijinhos de maracujá!

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