O que o buraco negro diz sobre a ciência e a alma da humanidade (ou "Por que verdade?")



A emoção de viver um dia histórico para os anais da ciência, ou seja, para seus registros e suas revelações de trabalhos e frutos, me traz muitas reflexões e conexões. Preciso compartilhar com vocês em forma de raio x.

TERRITÓRIO DOS AFETOS: SOROCABA + 8 lugares em 4 continentes do planeta + constelação de Virgo

Uma das coisas que me chamou atenção nas notícias sobre o tal buraco negro (notícias para mim tão empolgantes e até mesmo emocionantes) foi o fato de falarem de Einstein. Minha cabeça é confusa, mas vou fazer o esforço de explicar da melhor forma possível meu sentimento:

Antes de mais nada, para quem não sabe, neste dia 10 de abril de 2019, foi revelada ao mundo uma foto histórica, por ser a primeira foto de um buraco negro que a ciência (e a humanidade, como um todo) conseguiu produzir. Não é tão linda quanto a primeira foto da Terra, que me emociona como se fosse hoje, mas eu não vi no dia em que foi revelada, mas é linda, esteticamente de muito bom gosto. A foto é amarelada, alaranjada e escura. Preta. Um buraco negro, não se vê, você só vê os ultimos momentos de vida dos corpos que ele está prestes a atrair... A foto na verdade é do futuro do buraco negro, daqueles corpos que ainda estão sendo sequestrados por ele, mas que em breve serão parte dele. É uma loucura! Só podemos deduzir o buraco negro na foto, ele não aparece, vemos apenas um... BURACO NEGRO ...na foto. Como ele engole tudo, até a luz, não é possível vê-lo. A cognição humana ou de qualquer ser com qualquer tipo de visão só vê um corpo quando ele emite luz. E o buraco negro não emite luz. Muito pelo contrário. Ele é faminto, ele engole tudo, e isso faz dele invisível.

E aí é que entra Einstein. Porque na ciência você é um mentiroso, quando você é um teórico. Você usa as ferramentas conceituais filosóficas e matemáticas, você faz cálculos físicos e abstrações, considerando que é verdade o que outros teóricos e cientistas antes de você afirmaram. E aí você deduz algo, por exemplo, que a gravidade pode chegar a níveis de atração extremos. Mas você não tem como provar, porque nem o melhor dos telescópios poderia ver isso que você está, através de frases filosóficas e cálculos matemáticos, provando. Mas a comunidade científica pode ler suas frases e cálculos e dizer que sua teoria faz sentido, considerando tudo o que já foi provado. Se a comunidade te validou, sua teoria passa a ser a base para novas teorias... Agora você provou.

Mas ninguém nunca viu.

Na mídia, muitas matérias diziam e enfatizavam que a foto de 10 de abril provava que Einstein estava certo... Mais uma vez!

Me espanta e me espantou que, mesmo tantas vezes já tendo havido comprovações de aspectos, pedaços e elementos da Teoria da Relatividade de Einstein, nesse momento ainda fosse relevante para tantos jornalistas e cientistas enfatizar, nos meios midiáticos e virtuais, que ele estava certo, de que ele estava tendo uma comprovação de suas teorias.

Me perguntei "Mas Einstein ainda tem que provar que está certo?"...

Sim, sempre teria. Teorias podem ser refutadas, a ciência é feita disso. Mas o pensamento de Einstein, por mais que seja apenas do século passado, já é bastante consolidado, ao menos no que diz respeito à física, então meu espanto se mantém.

Pensando nesse espanto, me veio justamente um movimento do pensamento einsteniano que não está consolidado nos dias de hoje, que é justamente o seu pensamento sociológico.

Mas antes de falar disso, quero dizer de outra pulga atrás da orelha que me veio, filho desse espanto acima citado: muitas matérias falaram do fato de que o buraco negro era um pedaço da teoria de Einstein de que ele não gostava. Eu fiquei pensando nisso... Por que Einstein não gostava de pensar em corpos condensados com o poder irreversível de atrair tudo que entre em seu campo gravitacional? Aquela parte alaranjada, vermelho-amarelada, da foto, aquela luz que circulava o buraco negro quando os oito telescópios puderam registrar aquele momento (ou melhor, aqueles momentos, aqueles momentos finais), aquela parte amarelada estava acesa para a foto porque estava pegando fogo. E estava acendendo, pegando fogo, porque estava sendo tragada pela força irresistível da gravidade do Monstro. Sim, os cientistas do projeto de triangulação que fez a foto chamam o vaidoso e gigante buraco negro de Virgo de "monstro"... E por que Einstein não gostava desse pedaço da teoria.

Então eu, passando mal numa kitnet, enquanto estudava para um concurso dessa tão conturbada Sorocaba, cidade da Casa de Papel, a brasileira, comecei a buscar na minha memória as minhas principais memórias sobre Einstein. Agora, enquanto escrevo, me veio a foto com a língua de fora, o E=mc². até o meme com sua foto de shortinho na praia e a legenda "NOSSA, QUE FÍSICO!", mas não foi isso que me veio mais cedo. Não foram também, até certa altura do dia e da noite, as correspondências entre ele e Freud, textos tão importantes na minha formação acadêmica e profissional em psicologia. Já era madrugada quando lembrei conscientemente das cartas entre eles, mas sim... Conscientemente, era um pouco sobre isso que me vinham as memórias... Só que dois textos foram os principais que eu lembrei. Um inclusive cita o outro e lhe empresta o nome.

Acho que é um bom momento para falar que Einstein me remete a meus dois filósofos preferidos. Um é Espinosa, que me faz pensar em Deus, e que inspirou Einstein a uma vez responder, quando perguntado se acreditava em Deus, que sim, mas num Deus como o da filosofia de Espinosa. O outro filósofo que eu amo, cuja filosofia me serve muito bem e cuja memória me vem quando se fala em Einstein é o (tão recentemente falecido) Mészáros. E tanto Mészáros quanto Einstein escreveram um texto com essa frase no título: "Por Que Socialismo?"

Não vou agora entrar no mérito dos dois textos, mas existe uma conexão entre os dois. O texto de Mészáros é sobre o texto de Einstein. Um cita o outro. Um fala sobre o outro. E a conexão entre os dois é, a meu ver, o fato de a humanidade estar vivendo uma grande crise. Para Einstein, a humanidade vivia uma crise civilizatória, quando viu uma guerra usar uma tecnologia bélica que se aproveitava de suas formulações teóricas em física para destruir duas cidades, em um dos terrorismos de guerra mais cruéis de que se tem notícia. Além disso, o holocausto dizimou grande parte de seu povo, e deixou nas muitas e muitos sobreviventes uma cicatriz na alma que talvez seja impossível repararmos completamente, ou não tão cedo. Mészáros retoma essa questão para tratar de uma outra crise, na metade seguinte do mesmo século... Uma crise na arquitetura de todo o sistema social em que a humanidade estava e está imersa. Os dois achavam que a única saída para a grave crise da humanidade é o socialismo.

Fato é que a humanidade, que prossegue em crise, tem mais uma prova de que Einstein estava fisicamente correto. Num momento em que a verdade é posta em questão, em que a esfericidade da Terra, os fatos sobre os horrores do nazismo e das ditaduras militares da América Latina, e até mesmo a relação entre as emissões de carbono na queima de combustíveis fósseis e o grave aquecimento da atmosfera terrestre, estão sendo questionados por ideias, pessoas e organizações revisionisas... Neste momento da história e da crise da humanidade, uma foto de um buraco negro foi revelada. Justo aquela descoberta teórica de que Einstein não gostava. Mas é que o buraco negro e a bomba de hidrogênio falam da mesma coisa.

Se o universo é um sistema, e nele a gravidade pode atingir níveis radicais de destrutividade, criando processos irreversíveis de acumulação de corpos, de maneira que uma quantidade absurda de massa se concentre num mesmo e pequeno ponto, que cada vez se autocentra e se autoconcentra mais e mais, se Einstein estava certo e se sua teoria condiz com a realidade, então há na natureza uma tendência destrutiva que poderia engolir tudo o que é corpo, tudo o que é otimismo, tudo o que é luz.

Corpo e natureza são duas palavras caras à filosofia de Espinosa, o outro filósofo. O Deus de Espinosa é a natureza, e nela se dá o encontro entre os corpos, ou seja, tudo o que há. Se no universo de Espinosa há um buraco negro (e por mais que não quisesse, Einstein percebeu e constatou que há), a destrutividade irreversível é um pedaço de Deus. Na conversa de cartas entre Freud e Einstein esse drama está colocado. Essa é parte da inquietação que leva Einstein a escrever sua pergunta em carta para Sigmund.

O fato é que o socialismo é a possibilidade otimista de a humanidade não se render à força gravitacional destrutiva do buraco negro civilizacional que o capital é. E mesmo que discordemos de Einstein sociologicamente quando ele defende um futuro socialista, não podemos discordar dele que a humanidade está (desde aquela época e ainda hoje) em crise profunda, e que a sua angústia diante da bomba de Hiroshima e da hipótese teórica do buraco negro é legítima e diz respeito também à irracionalidade de toda a arquitetura da atual sociedade humana.

Eu comecei a ler as matérias sobre a tal foto por um misto de curiosidade infantil e necessidade profissional. Esse sábado darei uma aula pública de atualidades, e no concurso para o qual preparei esta aula, notícias como uma conquista científica desta magnitude têm fortes chances de virar questão, ou mesmo de inspirar a banca a priorizar ou escolher um outro tema correlato.

Mas são quase quinze para as três da madrugada do dia 11 e eu ainda estou digitando freneticamente, desabafando mais essa crônica tresloucada, mais esse raio x dos afetos. Dos afetos dum cientista, duns filósofos e duma fotografia. Um outro judeu disse, em língua estrangeira "better make the right move", ou seja, que é melhor fazer o movimento correto". Na linguagem corporativa, eu diria que ele está falando de tomada de decisão, mas o que Matisyahu fala, neste verso, tem a ver com não sermos mera luz queimante sugada para dentro de um buraco negro, e sim romper com a destrutividade e realizar um poder de mudança. Ele está falando com a juventude, e eu quis citar Matisyahu, mais um homem num texto que cita tantos homens, e cujo poema citado se dirige mais uma vez a um homem (ele diz "Young man, the power is in your hand", ou seja, "Jovem homem, o poder está em suas mãos"), justamente porque os versos desta música me inspiram a homenagear uma jovem pesquisadora, que contribuiu nos algorítimos que permitiram que os oito telescópios conseguissem captar a fotografia do monstro. "Young is the engine of the world". Eu sou hoje ainda um entusiasta da ciência, da verdade e do socialismo. Mesmo que pareça que estamos na boca de um buraco negro.

Ah! E também da juventude!

beijinhos de maracujá!

Comentários

  1. Este texto me trouxe boas surpresas! Eu não sabia dessas fofocas sobre Einstein e Freud! E agora, após ler os dois textos, concordo que raio-x, raio-x dos afetos, é um excelente nome para o que você propõe, insistentemente, e com uma irreverência intelectual cantante! Sucesso, jovem!

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